O temporal me impedia de ver os prédios no horizonte. Pingos grossos faziam desenhos na janela: uma escada, um coelho, uma bruxa… Não sei quanto tempo passei analisando formas tão abstratas quanto meu futuro depois do divórcio. Só me restava o apartamento, ainda mais vazio sem ele, alguns móveis e fotos nos porta-retratos.
Via a chuva do sofá propositalmente desconfortável: separações de madeira delimitavam os lugares, apunhalando as costas, e o couro preto colava na pele. Lindo, de grife, caríssimo e obediente. Cumpria sem esforço a determinação de que ninguém se deitasse. Antes, eu evitava o contato; preferia uma cadeira da sala de jantar. Agora, deitava-me aos caprichos de uma liberdade teimosa.
Eram os últimos momentos do sofá comigo. Meu ex-marido viria buscá-lo tão logo parasse de chover na cidade. Estranhamente, desde a separação, não fazia um dia completo de sol. Enquanto aquela obra de arte não era retirada, eu subvertia a regra feito criança travessa em museu, esticando os dedos para tocar um quadro. Meu deleite era menos intenso: não havia guardas e as costas me doíam um pouco, apesar do edredom e das almofadas.
Confesso que pensei em rasgar o sofá com uma faca. Mas que prazer me daria essa vingança? Além do mais, não saberia nem calcular quantos meses teria de trabalhar para restituir o prejuízo. A partilha estava assinada e o sofá – indigno do próprio nome – integrava a parte dos bens que caberia ao meu ex-marido. Deitar-me era a transgressão possível. Os clarões da tempestade, o rugido dos trovões e os golpes da madeira em minha coluna não me impediram de pegar no sono. Sonhei com dias de céu azul e uma vida mais confortável.
Imagem: Woman on sofa (c. 1922-1927), de Guy Pène du Bois (1884-1958)
História sóbria, fácil de ler… Eu gosto que ele vai escalando algumas histórias com humor…. me lembrou o Orides Fontella, misturado com Luis Fernando Verissimo…. rsrsrs
Gostei!!!! Parabéns Pedro pela diversidade no blog e pelo exercício poético.
Muito boa escolha Juan! Gracias!!
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