
(Blog despenhadeiro/ Marcos santos)
Hoje, na minha desprezível falta de organização pessoal, perdi o ônibus em direção à universidade. Após me sentar frustrado no ponto, retirei da bolsa uma quimera de palavras e rabiscos. Maltratada de tanto manuseio, das tantas tentativas de decifração daquilo que ainda lhe faltava. Minha monografia se debruça sobre a importância da liberdade de expressão para o desenvolvimento da ciência.
A pesquisa se fundamenta historicamente nos documentos da explosão de uma usina termonuclear e filosoficamente nos trabalhos em torno do contexto necessário para a produção científica, a epistemologia dos pós socráticos, também Karl Popper e Thomas Kuhn. A conclusão é simples: a física natural não será afetada por uma falha de interpretação arbitrária. No entanto, as pessoas sob o regime autoritário, tomando decisões baseadas em uma mentira, colherão os frutos podres de um fracasso que não lhes ensina.
Imagine que o sistema científico moderno funcione como uma esteira em direção a uma trituradora de ideias mal fundamentadas. Porém, toda vez que um fuzil é apontado para um pesquisador, um dente desta máquina é destruído.
Ao lado do título “O confinamento científico na Segunda Guerra Mundial” está o primeiro comentário, nas letras do orientador mais genial e menos didático do departamento: “Seja mais específico”. No rigor acadêmico, nem a sua capa pode ser perdoada.
Havia lido algumas páginas e feito outras tantas de anotações quando o ônibus chegou. Na fila da catraca mal funcionando, uma mulher que lhe dava empurrões perguntou ao cobrador se não haveria uma lata substituta. O cobrador respondeu que poderia ser um ônibus pior. Na fissura acadêmica, pensei logo na democracia.
Afinal, com exceção de todos os outros, ela é o pior sistema político. Longe de imaculada, é imperfeita. Logo, a desfuncionalidade científica, o dente quebrado da máquina trituradora de ideias rasas, poderia existir em pleno governo democrático. A centralização do poder de decidir a validade de uma ideia não seria tão óbvia quanto se existisse um Ministério da Verdade, mas se evidenciaria de forma sutil. Sentei-me no ônibus e remexidamente me propus a escrever esta ideia. Quando terminei de anota-la, mal tive tempo para relaxar no banco. Haviamos chegado.
Nos corredores à procura do meu orientador, me disseram que o encontraria na sala de reunião geral. Ao bater e abrir a porta, arregalei os olhos para o agrupamento mais esquisito de doutores – reconheci talvez dois e presumi que todos os outros também fossem. Haviam uns trinta deles sentados atrás de mesas que formavam um grande círculo. Todos equilibravam enormes pilhas de livros sobre a cabeça. As cortinas estavam fechadas, mas pelas tiras de luz que penetravam as suas frestas, eu enxergava a lenta fumaça exalada por alguns cigarros acesos. Confortáveis, alguns até com os pés cruzados sobre a mesa, eles liam, escreviam feito malabaristas, sem derrubar nenhum livro daquela pilha sobre a cabeça.
– “Caio, sente-se ali que eu já vou tratar do seu caso”
Segui as ordens do meu orientador, pendurei a mochila no encosto da cadeira e me sentei de costas para aquela reunião esquisita. Vez ou outra virava o pescoço e forçava os olhos para os cantos, tentando colher de forma desapercebida mais informações sobre o que acontecia. Nessas espiadas, percebi que eles não trocavam apenas cartas, mas também livros, revistas e blocos de papéis. Também percebi que a maioria dessas coisas paravam no lixo.
– “E então, cadê?”
Era meu orientador. Entreguei a tese em suas mãos, mas não parei de fitar a pilha de livros estática sobre a sua cabeça. Havia Sartre, Foucault, Hume, Kant, alguma coisa com seu próprio nome…
– “Não falei para você se aprofundar no conceito de epistemologia?”
– “Mas foi o que eu fiz. Expliquei melhor, com mais detalhes.”
– “Eu não preciso que você me explique tecnicamente as coisas que eu já sei. Eu não quero sofrer mais do que o necessário corrigindo suas coisas e você ainda me enche a tese com tédio?”
Aquela arrogância não era uma surpresa e eu soube ali que esta não seria a última versão do meu trabalho. Apertei os olhos com os dedos, mas logo voltei a atenção para os autores sobre aquela cabeça: Hegel, Platão, Agostinho, Wittgenstein…
– “Pfff!” – ele visivelmente entediado – “Eu vou ser sincero com você para tentar poupar o meu e o seu tempo. Isso aqui…” – apontando para minha tese – “…não é importante”
– “Como pode não ser importante? Nunca vi algum trabalho relacionando estes temas.”
– “O conhecimento não é um quebra cabeça cheio de lacunas para você preencher com uma peça que faltava. A ciência é este círculo social atuando nas suas costas. Quando uma nova tese de mestrado vai parar em alguma mesa dessas, ela não será criticada por uma mente imparcial, mas por alguém que vem reforçando as suas próprias ideias dentro de um circulo limitado pelas discussões, pelos autores e projetos que sempre massagearam os seus egos.
Os fundamentos teóricos que circulam alí dentro dificilmente serão colocados a prova, na maiorias das vezes, serão reforçados por informações selecionadas, aquelas que não abalam as pilhas de livros sobre as nossas cabeças. Por isso, no sentido menos político da palavra, toda ciência é conservadora, todas as ciências são constituídas por uma hierarquia seletiva que se parece com esta sala. A sorte da humanidade é que não existe apenas um círculo, mas o seu azar é que só este aqui lhe importa.”
Enquanto ele acendia um cigarro como que se tudo que tivesse falado não fosse nada, eu fiquei mudo.
-“O seu trabalho não precisa ser importante para humanidade, só precisa agradar algumas pessoas desta sala.”
Devo ter passado dias lá dentro. Lendo, escrevendo e revisando a minha monografia, adequando-a aos comentários incessantes do orientador. A maior parte dela se transformou no elogio de autores que poderiam estar sobre a cabeça dos meus jurados.
Apresentei o trabalho, todos amaram e eu acordei assustado no ônibus, com um colega me cutucando, avisando que havíamos chegado.