A Loucura de Melinda Sanchez

Por: Ciça Silveira

Foto por Elu012bna Aru0101ja em Pexels.com


Quando a vigilância sanitária entrou na casa da Sra. Melinda Sanchez, o cheiro de merda era insuportável. Os habitantes da cidade estavam horrorizados. 

Naquela semana não a viram perambular pela cidade, e se mobilizaram para acionar o órgão público responsável. A mansão era um antro de gatos e cachorros que foram recolhidos por ela. Afinal, ninguém mais lhe restara. 

Melinda Sanchez era a mais nova de quatro irmãs. Sua mãe tinha a natureza promíscua e, no passado, se envolvera com todos os homens do cais do porto. Promovia bingos cujo prêmio principal era passar a noite com ela. Uma forma de obter dinheiro fácil e diversão barata.
Não passava fome e ainda podia manter-se bela com o montante arrecadado. 

Casara-se com Manolo Gutierrez, comerciante espanhol, recém chegado à cidade, e incrivelmente abastado.
Manolo desembarcara no cais do porto, exalando dinheiro e poder. Era dono de uma fábrica de azeite na Espanha. 

A risada de Maria arrepiou-lhe os cabelos da nuca e ao vê-la, o feitiço lhe pegou em cheio e o homem ficou louco de desejo. Ela, porém, não lhe deu a menor confiança. O homem era obstinado e passou a frequentar o Bingo da Maria Clarinda até que, após possuí-la, a raptou e desposou.

Manteve Maria em cativeiro luxuoso, na mansão fortemente vigiada dia e noite. Para tornar-lhe a vida suportável, Maria Clarinda se entregou ao vício de cheirar rapé e tomar absinto, que obtinha subornando os serviçais. 
Nos raros momentos em que estava sóbria, cuidava das quatro filhinhas: Luciana, Dirce, Paola e Melinda. 
As irmãs de Melinda eram incrivelmente encantadoras, herdaram a leveza daqueles que nascem predestinados à felicidade, enquanto que Melinda, desde bebê tinha um comportamento incompreensível e irascível. 
Ainda recém nascida, costumava chorar fora de hora para mamar, mordia o bico do peito da mãe, acordava de bruços na madrugada, com os olhos arregalados, arranhava quem tentasse pegá-la no colo.  Mais tarde, já lá pelos oito anos, passou a cuspir em estranhos e escarrava nas paredes dos comerciantes que não lhe dessem a mercadoria de graça. 
E, assim Melinda cresceu na cidade de San Juan de Passo Fundo com fama de ter na alma a marca do diabo. 

Os habitantes da cidade ficavam penalizados com a sorte daqueles pais.

A criança era o capeta amaldiçoado e à época da alfabetização brigava com todos, subia em cima das cadeiras e sapateava aos berros. Sua educação passou então a ser ministrada em casa, mas por pouco tempo, pois nenhuma tutora queria dar-lhe aulas, pois eram agredidas, estapeadas e uma delas quase foi esfaqueada. 

A menina odiava os que eram mansos e tranquilos. Invejava tanto a felicidade eminente das irmãs que, numa noite durante a adolescência, trancou o quarto onde Luciana, Dirce e Paola dormiam e ateou fogo nas cortinas. Tinha raiva por ter nascido e todos aqueles que estivessem ao seu redor deveriam pagar por isso. Por sorte, um empregado que passava pelo local arrombou as janelas e resgatou as meninas. Quanto a Melinda, ela havia se escondido em algum dos muitos cantos da casa.  Os pais, preocupados, desesperados e amorosos, acharam que tal fato fosse apenas uma forma de Melinda chamar atenção. Deram-lhe, então, um quarto separado do das irmãs. Cercavam-na de mimos e destinavam à menina mais atenção do que realmente merecia, mas a ingrata cada vez chafurdava mais a sua alma na lama do ressentimento.

 Ninguém em sua família jamais entendera tal comportamento, e à medida que os anos passavam, tornava-se mais difícil o convívio, principalmente nas datas festivas. 
Para aplacar um pouco o monstro verde do ódio que lhe comia as entranhas, ia ter com Laurindo Menescal, empregado da mansão, que também não era bom das faculdades mentais. 
O sujeito era rude e agressivo, adorava mostrar as partes íntimas para as meninas da cidade que, assustadas, saíam correndo.  Como sabia que não podia arriscar o emprego, nunca havia mexido com as filhas dos patrões. Até que numa tarde, após fazer um escândalo porque o prato ordenado às serviçais estava com pouco sal, Melinda saiu porta afora da mansão, vociferando impropérios, quando deu de cara com Laurindo. 

Ele sorriu maliciosamente e disse : «Melindinha, isso é falta de piroca, deixa que eu te mostro o caminho para a felicidade!». 

Ela o mandou à merda e sorriu. Foi o sinal verde para que, a partir de então, todas as noites Laurindo e Melinda fizessem amor embrutecido e violento nos recantos mais remotos do terreno, onde ficava a mansão. 
No dia seguinte, além de estarem com as partes íntimas em carne viva, tinham ainda marcas de arranhões e mordidas por todo o corpo. Quando questionada pelos pais à respeito das marcas, gritava alguma coisa inteligível e virava as costas.  Os anos passaram e os tempos prósperos de outrora definharam. As filhas mais velhas haviam feito ótimos casamentos. 

Somente Melinda havia ficado na mansão. 

Vieram tempos difíceis para a família Gutierrez. O pai de Melinda havia falecido de tifo, deixando as dívidas se acumularem sobre a propriedade. A mãe estava enlouquecida pelo vício, desesperada e sem condições para administrar qualquer coisa. Tanto que a pobre senhora acabou por enforcar-se no quarto do casal. 
Chocada, após encontrar o corpo de Maria Clarinda, a empregada saiu aos berros à procura de Melinda, que lhe deu um tapa e disse ironicamente : «Recobre a sanidade, chame as minhas irmãs, e enterre-a. E, diga-lhes que paguem as dividas de papai. Não pago porra alguma!
Sou uma fodida sem estudo.
Depois podem todos ir embora. Não me servem de nada. A mansão é minha. O resto elas podem levar.» 
Desnecessário dizer que não houve qualquer partilha de bens.
As irmãs queriam evitar Melinda a todo custo. Não queriam qualquer contato com a pobre desvalida de miolos sãos.
Assim, as irmãs pagaram as dívidas e permaneceram em silêncio, orando para que algum dia, Deus pudesse apaziguar o coração atormentado da irmã. 
Melinda e Laurindo, o único que permaneceu na mansão, passavam a maior parte do dia queimando a vida com o amor bruto, e cultivando o seu sustento numa horta improvisada, para conseguirem sobreviver. A mansão, outrora bela e reluzente adquiriu o caráter de Melinda, tornou-se soturna, repleta de infiltrações. O jardim da frente transformara-se num matagal. Já o jardim de inverno estava repleto de bugigangas não utilizadas. Assim como era sua alma, tornara-se a sua casa.

Aos poucos, o tédio foi minando os dias de Laurindo, e aquilo que parecia um jogo sedutoramente pervertido e perverso, transformou-se em algo corriqueiro e banal. Então, sempre que Melinda adormecia profundamente, ia para a cidade, de madrugada, e só retornava na manhã seguinte, bêbado e fedendo como um gambá com a roupa manchada de batom. Os dois se agrediam com palavras, socos, tapas, mordidas e pontapés, até que, exaustos e ensangüentados, jaziam sobre o chão imundo na mansão.

Anos de loucura, anos de solidão a dois. Até que um dia, um menino da cidade, apavorado, veio avisar à Melinda que Laurindo tinha ficado com um pé preso nos trilhos do trem, tendo o corpo extirpado por uma locomotiva. 

Olhando a criança, inerte, Melinda derramou duas lágrimas magrinhas e disse :»traga-me o que sobrou dele, vou enterrá-lo aqui». Cavou a cova com as próprias mãos e jogou no buraco a caixa com os restos mortais do pobre infeliz. Fez uma placa de madeira escrita com letrinha torta de criança: «Aqui jaz meu porra-louca, que odiei tanto quanto amei».

Após a morte de Laurindo, Melinda deu vazão a todo o seu desvario. Gritava impropérios a plenos pulmões nas noites de lua cheia, batia nas crianças que vinham zombar na porta da mansão, vagava na cidade à procura de animais perdidos, e levava-os para a sua casa, para fazer-lhe companhia.
Não se tratava de caridade.
Precisava ter com quem gritar, agredir.
Cada animal que se virasse para comer. Só não podiam cagar nem mijar na mansão, caso contrário desferia-lhes pontapés e tapas. 

Nos anos que se seguiram, Melinda permaneceu mergulhada na insanidade. Até aquele fatídico dia, quando encontraram o seu corpo parcialmente destroçado pelos animais famintos. Estava com 82 anos. Morrera como sempre vivera: devorada pelos demônios que ela mesma criava!

Anuncio publicitario

Un comentario Agrega el tuyo

  1. Fátima Costa dice:

    Muito bom o conto e interessante ! 👏
    Este conto prende o leitor. Parabéns!!

    Le gusta a 1 persona

Deja una respuesta

Introduce tus datos o haz clic en un icono para iniciar sesión:

Logo de WordPress.com

Estás comentando usando tu cuenta de WordPress.com. Salir /  Cambiar )

Foto de Facebook

Estás comentando usando tu cuenta de Facebook. Salir /  Cambiar )

Conectando a %s